Dez anos após tragédia, ainda há locais sem prevenção contra incêndios na Capital

Desastre em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, ocasionou a morte de 242 pessoas; três das vítimas eram de MS

O dia 27 de janeiro ficará para sempre marcado na memória dos brasileiros. Há 10 anos, o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi responsável por matar 242 jovens e ferir outros 636, após uma série de erros que permitiram o funcionamento de uma casa noturna que descumpria requisitos básicos de segurança e prevenção ao fogo.

Apesar da comoção nacional pela tragédia, que ocorreu a 1.305 km de Campo Grande, a engenheira-agrimensora e presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Mato Grosso do Sul (Crea-MS), Vânia Abreu de Mello, destacou ao Correio do Estado que ainda há estabelecimentos na Capital que não têm projeto contra incêndio.

“Infelizmente ainda fiscalizamos locais que não têm projeto contra incêndio e pânico e também locais que têm, mas que foram elaborados por profissionais sem habilitação técnica para tal”, salientou Vânia.

Segundo a presidente do Crea-MS, para que tragédias como a da Boate Kiss não se repitam, é necessário investimento. “O que realmente precisa mudar é o empresário enxergar que, ao contratar um engenheiro, ele está fazendo um investimento para garantir a segurança de seus frequentadores”.

A Prefeitura de Campo Grande informou que o Sistema Integrado de Administração Tributária (Siat) do município tem 34 empreendimentos – boates, danceterias e discotecas – cadastrados em situação regular.

No entanto, conforme nota, o levantamento de empreendimentos irregulares, bem como a localização por região, “estão fora dos parâmetros de informações disponibilizadas pelo sistema”.

Há 10 anos, conforme publicado no Correio do Estado, de 30 casas noturnas da Capital, 8 estavam irregulares. À época, o relatório do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso do Sul (CBBMS) apontou falhas em projetos de proteção contra incêndio e pânico, obstrução de extintores e falta de placa indicativa de limite máximo de pessoas, entre outros.

A reportagem tentou, ao longo da semana, contato com o Corpo de Bombeiros para um novo levantamento de casas noturnas em situação irregular na Capital, no entanto, não obteve retorno até o fechamento desta edição.

VÍTIMAS DE MS

O incêndio na Boate Kiss matou três sul-mato-grossenses. Apesar de David Santiago Souza, de 22 anos, ter nascido em Santa Maria, ele morou durante anos em Campo Grande com os pais e o irmão.

A estudante de Administração Flávia de Carli Magalhães, de 18 anos, nascida em Chapadão do Sul, também perdeu a vida no incêndio. A estudante Ana Paula Rodrigues, de 21 anos, nascida em Mundo Novo, passava férias na cidade gaúcha e foi a terceira vítima da tragédia.

Além dos mortos, os irmãos douradenses Donizete do Nascimento Júnior e Willian Nascimento estavam na Boate Kiss e conseguiram escapar com vida.

Em entrevista ao Correio do Estado em 2013, pouco após o incêndio que destruiu a boate, Donizete afirmou que estava na área VIP e, quando o fogo começou, a maioria das pessoas permaneceu no local, acreditando que a situação seria controlada.

No entanto, as chamas se alastraram rapidamente e houve correria em direção às portas de saída.

“Quando começou o fogo, todo mundo achou que dava para contornar. Como eu estava na área VIP, que fica logo na entrada, à esquerda, no mezanino, ficou mais perto da saída e, quando eu vi o povo saindo e correndo para porta, eu não pensei duas vezes: saí correndo”, afirmou.

Já do lado de fora, o cenário era de desespero. “Algumas pessoas morreram com a mão esticada, tentando ajudar as pessoas ou pedindo ajuda. Havia muita gente se espremendo, e as meninas que usavam salto acabaram ficando para trás”, contou à época.

FISCALIZAÇÃO

De acordo com a engenheira agrimensora, o Crea-MS vem ampliando em todas as áreas suas fiscalizações, principalmente em locais que recebem grandes públicos, como eventos, shows, casas noturnas, bares, parques de diversões e estádios de futebol.

“No ano de 2022, por exemplo, se juntarmos todos esses estabelecimentos e eventos, fiscalizamos cerca de 187 locais que recebem público”, disse a presidente do conselho.

Segundo Vânia, para este ano, o Crea-MS está planejando ampliar o trabalho de fiscalização por meio de parcerias com outros órgãos, como o Corpo de Bombeiros Militar e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul.

LEGISLAÇÃO

Após o incêndio na Boate Kiss, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul promulgou, ainda em 2013, a Lei nº 4.530, que proíbe utilização de materiais pirotécnicos em recintos fechados.

Aliada à fiscalização dos bombeiros, a Lei nº 4.355, assinada em 10 de abril de 2013 pela então governadora em exercício Simone Tebet, criou o Código de Segurança contra Incêndio, Pânico e Outros Riscos em MS.

Ao Correio do Estado, o coronel e diretor de atividades técnicas do Corpo de Bombeiros, Claudiney da Silva Quintana, explicou que, com a nova lei, a corporação teve seu poder de polícia assegurado e regulamentado, possibilitando uma série de procedimentos necessários à segurança, tais como autuações, apreensões e interdições, entre outras medidas fundamentais.

“Atualmente, o Corpo de Bombeiros conta com 45 normas técnicas que foram sendo atualizadas ao longo do tempo, contemplando o que há de mais moderno no Brasil e no mundo no campo da segurança contra incêndio e pânico”, disse Quintana.

Segundo o coronel, no que tange à segurança nas casas noturnas, a legislação atual contempla uma série de medidas que facilitam a evacuação segura e rápida das pessoas.

“Ao longo de quase uma década da criação do código, as fiscalizações da corporação e as parcerias com o poder público têm contribuído significativamente para a regularização dessas casas. O CBMMS desenvolve um intenso e diuturno trabalho de fiscalização nessas edificações, não havendo quaisquer registros de incêndios graves nesses ambientes em Mato Grosso do Sul após a criação da Lei nº 4.335”, destacou Quintana.

INCÊNDIO

No dia 27 de janeiro de 2013, a banda Gurizada Fandangueira fazia apresentação ao vivo na Boate Kiss e, por volta das 2h30min, acendeu um sinalizador de uso externo dentro da casa noturna. Faíscas do artefato acabaram incendiando a espuma que fazia o isolamento acústico do local.

A queima da espuma liberou gases tóxicos, como o cianeto, que é letal. Essa fumaça tóxica matou, por sufocamento, a maior parte das 242 vítimas. Além disso, o local não contava com saídas de emergência adequadas e os extintores eram insuficientes e estavam vencidos.

Parte das vítimas foi impedida por seguranças de sair da boate durante a confusão, por ordem de um dos donos, que temia que não pagassem as contas.

Saiba: Apenas em dezembro de 2021 os quatro réus do incêndio na Boate Kiss foram levados a júri popular. Após 10 dias de julgamento, Luciano Bonilha Leão, produtor da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, músico do grupo, e os sócios da boate, Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, foram condenados a penas que variavam de 18 anos a 22 anos de prisão.

No entanto, em agosto de 2022, os advogados de defesa recorreram e conseguiram anular a sentença. Os réus foram soltos e não há data para novo julgamento.