Após atender 2.091 famílias com energia renovável, Ilumina Pantanal vai levar inclusão a mais 836 na 2ª fase

Programa desenvolvido para atender famílias do Pantanal de MS foi premiado mundialmente e já está sendo replicado na Amazônia Legal.

Instalação do kit de energia solar na propriedade do produtor Waldemar Magalhães, na Serra do Amolar, área isolada do Pantanal de MS — Foto: Energisa/Divulgação

“Quando uma estrela cai no escurão da noite…”, diz a introdução de “O Violeiro Toca”, um clássico brasileiro e um dos maiores sucessos de Almir Sater e Renato Teixeira. E justamente uma condição retratada neste trecho da música, em uma das paisagens mais belas e preservadas do mundo, onde um dos seus autores vive e se inspira para compor a sabedoria e os desenganos da natureza, está mudando graças ao um projeto que alia novas tecnologias, preservação do meio ambiente e inclusão social.

A energia elétrica, de fonte renovável, o sol, está chegando as áreas mais distantes e isoladas do Pantanal, em Mato Grosso do Sul. O “escurão da noite”, cantado pelo pantaneiro Almir Sater, já deixou de ser realidade para 2.091 famílias de ribeirinhos, trabalhadores rurais, produtores e indígenas, além de escolas e comunidades, que foram atendidas em Corumbá e Porto Murtinho, pela primeira fase do programa Ilumina Pantanal, entre 2021 e 2022.

Para a segunda fase do programa, que começa oficialmente na próxima segunda-feira, dia 25 de julho, a concessionária responsável pelo fornecimento de eletricidade para a maior parte de Mato Grosso do Sul, a Energisa, prevê atender mais 836 famílias, sendo 700 até setembro.

O gerente do Ilumina Pantanal, Héber Selvo, diz que as soluções tradicionais de eletrificação, com redes de distribuição, fiação exposta, postes e subestações não teriam viabilidade econômica, técnica e ambiental para essas áreas quase isoladas no Pantanal e que, por isso, foi pensando em um novo sistema para atender a região.

“Toda esta diversidade de biomas, fauna e flora são sensíveis as soluções tradicionais de eletrificação, como as redes de distribuição com a fiação exposta, que pela característica do Pantanal podem afetar aves de médio e grande porte. Para a instalação dos postes destas redes é necessário a abertura de faixas de passagem, estradas para transporte e infraestrutura pesada de construção. Além do mais, seria necessário a construção de duas subestações de porte para distribuir energia na região. A configuração de uma subestação é muito sensível ao regime de alagamentos da região e a sua construção exige o transporte de equipamentos pesados por uma região que não possui infraestrutura viária para tal”, explica.

Por conta dessas dificuldades, Selvo, diz que a empresa iniciou em 2015 um projeto de pesquisa e desenvolvimento fomentado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O objetivo, desenvolver uma solução inovadora para levar energia as áreas isoladas do Pantanal.

“Foi realizado um levantamento inicial via imagens de satélite, buscando identificar, pelo tratamento das imagens digitais, a localização das potenciais unidades consumidoras. Posteriormente foi realizado o levantamento de campo a cada unidade a fim de verificar efetivamente o número de famílias e residências daquele local. Este levantamento indicou um total de 77 unidades que poderiam ainda ser atendidas com a extensão do sistema convencional de distribuição, e mais 2090 unidades que estavam distantes das redes, inviabilizando seu atendimento pela solução convencional”, recorda.

A pesquisa identificou aproximadamente 3,4 mil moradores que vivem nas regiões mais isoladas do Pantanal, sendo que 45% desse total, são ribeirinhos.

O gerente do Ilumina Pantanal explica que neste mesmo projeto foram desenvolvidos estudos de viabilidade para o uso na região de diversas fontes de energia renováveis e intermitentes, como: eólica, biomassa, hidráulica e também a solar. “A fonte de energia solar fotovoltaica se mostrou a mais viável do ponto de vista técnico, por não possuir partes girantes (turbinas, eixos, mancais) e exigir menor manutenção, bem como do ponto de vista econômico pois a tecnologia é mais adequada a centrais de pequeno porte”.

Ele diz que definida a fonte solar voltaica, como melhor alternativa técnico-econômica, os estudos se voltaram para identificar a tecnologia de armazenamento mais adequada para a região. “Dada a natureza intermitente da fonte solar é necessário armazenar sua produção para utilização nos momentos em que a fonte não está disponível, quando não tem sol. Para isso iniciamos a fase dois do projeto, voltado a definir a melhor tecnologia de armazenamento para aplicação neste case”.

A melhor alternativa, conforme ele era a utilização de baterias com a tecnologia de Lítio ferro fosfato (LiFePO4), a mesma dos veículos elétricos, que seria capaz de atender as necessidades de consumo de uma unidade consumidora por até dois dias sem sol.

As pesquisas duraram cinco anos,envolvendo a CSA, Calden e Lactec, e R$ 10 milhões de investimento. Os estudos levaram até o desenvolvimento do Sistema Individual de Geração com Fonte de Energia Intermitente (Sigfi).

A iniciativa foi criada, conforme ele, levando em conta a preservação do meio ambiente – desenvolvendo uma tecnologia que não agredisse o bioma; e a questão logística – com a utilização de materiais que tivessem um volume e um peso menor, possibilitando reduzir os custos com transporte e com manutenção.

“O sistema é um conjunto de 4 módulos fotovoltaicos de 345 Wp (watt-pico) cada, que totalizam uma potência instalada de 1.380 Wp. A energia gerada pelos módulos é convertida para carga do banco de baterias por um controlador carga de 2.500W Studer, que faz a conexão com um banco de baterias com dois módulos de 48V/50Ah. Este banco de baterias, de tecnologia Lítio ferro fosfato totaliza uma capacidade de armazenamento de 4.800 Wh”, detalha.

Selvo explica que a energia gerada e armazenada em corrente contínua é convertida para “corrente alternada por meio de um Inversor de frequência de 2.000 W onda senoidal pura”, para ser entregue então na residência do cliente. O sistema, de acordo com ele, tem capacidade para atender uma casa com geladeira, televisão, rádio, três pontos de luz e um tanquinho de lavar roupas. “Por ser uma solução leve e compacta a interferência no bioma é a mínima possível”.

O sistema, de acordo com o gerente do Ilumina Pantanal, utiliza componentes de várias parte do mundo. Os módulos fotovoltaicos (placas solares) são da China. O controlador de carga é da Suíça. O inversor de frequência também é chinês. O banco de bateria é brasileiro, assim como a estrutura de sustentação, também, toda em alumínio.

Além da interferência no bioma ser mínima, Héber Selvo relata que outra vantagem do sistema é ter um menor volume e ser mais leve. “O banco de baterias de Ion Lítio ferroso tem um sexto do tamanho e um terço do peso em comparação com um banco de Chumbo ácido – PbSO4, da mesma capacidade.”

Somente na primeira fase do programa, as equipes da concessionária transportaram mais de 936 toneladas de equipamentos entre módulos fotovoltaicos, baterias de lítio e eletrônica de potência em uma região de 92 mil quilômetros quadrados sem estradas formais e que passa 80% do ano alagada.

Custo

O custo de cada kit é de aproximadamente R$ 71 mil e 60% é custeado pelo Programa Luz para Todos, do Ministério das Minas e Energia. Além da Energisa, são parceiros do projeto o governo de Mato Grosso do Sul, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Eletrobrás e o Ministério das Minas e Energia.

Ao todo, a Energisa e o governo federal estão investindo R$ 134 milhões no projeto. O investimento é 80,86% menor do que se a eletrificação fosse feita com o sistema convencional, que demandaria para a universalização do acesso a energia elétrica na região custaria em torno dos R$ 700 milhões.

O projeto piloto foi iniciado em 2018 com 23 instalações nas mais variadas regiões do Pantanal, atendendo a 22 famílias e uma escola. Na segunda fase, serão instalados mais 836 unidades nas regiões do Pantanal de Paiaguás, Nabileque e Nhecolândia.

Outra vida
Entre os pantaneiros que receberam o benefício está o produtor rural Waldemar Magalhães, de 79 anos. Ele é filho de desbravadores da região da Serra do Amolar – uma das áreas mais isoladas do bioma em Mato Grosso do Sul. A região fica a cerca de 100 quilômetros de Corumbá e o acesso é feito somente por barco ou avião.

O g1 esteve na região em julho de 2021, quatro meses antes das equipes do programa instalarem o kit na casa de Waldemar. Em meio as histórias sobre as dificuldades da vida na região para cultivar uma pequena lavoura de subsistência e manter algumas cabeças de gado leiteiro, ele revelou a ansiedade e a expectativa pela chegada da energia.

O panteiro disse que tinha em casa uma gelaeira, mas que ela funcionava a gás e que, por isso, não ficava o tempo todo ligada. O eletrodoméstico, assim como o gerador, movido a gás, só funcionava em ocasiões especiais, quando o produtor recebia alguma visita ou algum parente.

“Aqui não é fácil. Tem essa geladeira velha, a gás, que só esfria e male mal. E o gerador sai muito caro. Você não aguenta pagar o preço do diesel. Ligo ele somente quando precisamos. Se tenho que sair uso uma lanterna”, dizia na época.

Com a eletricidade, a vida de Waldemar mudou e os tempos de “perrengue” ficaram no passado.

Outra beneficiada, também da região da Serra do Amolar é a ribeirinha Enaurina da Silva Rodrigues, de 60 anos. Catadora de iscas, para a venda aos turistas, ela mora em uma casa improvisada, feita de lona e madeira, nas margens do rio Paraguai.

Com a eletricidade, além de uma geladeira doada por um programa social da concessionária, ela ganhou também mais segurança para criar as netas. “Tudo era muito difícil. Tínhamos que fazer lamparina de óleo diesel para clarear”, recorda, comentando que a claridade da lampada ajuda a manter visitas indesejadas, como as onças, afastadas de sua casa.

Preservação ambiental

A preocupação com a preservação ambiental sempre foi um dos pilares do programa em razão da importância do bioma em que a iniciativa foi desenvolvida. O Pantanal é uma das maiores áreas úmidas contínuas do planeta. Dos seus 138 mil quilômetros quadrados de área, 65% estão em território sul-mato-grossense. Pela importância para o meio ambiente é considerado Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera pela Unesco. Já foram identificadas no bioma 3,5 mil espécies de plantas, 325 peixes, 53 anfíbios, 98 répteis, 656 aves e 159 mamíferos.

Em razão das características hidrogeomorfológicas, das vegetações e dos períodos de alagamento, o Pantanal apresenta 11 subdivisões, sendo oito em Mato Grosso do Sul: Paiaguás, Nhecolândia, Paraguai, Nabileque, Porto Murtinho, Abobral, Miranda e Aquidauana. Em algumas delas, o acesso ocorre somente pelos rios da região – principalmente o Paraguai, ou por via área – avião ou helicóptero.

De MS para o mundo

A tecnologia criada para atender as famílias isoladas do Pantanal sul-mato-grossense e o know-how aquirido pela concessionária neste processo estão sendo utilizados para levar energia elétrica gerada de forma sustentável para a Amazônia Legal.

Por meio de convênio assinado com Ministério das Minas e Energia, a Energisa está levando o sistema para regiões remotas do Acre (1.368 ligações previstas para 2022), Rondônia (900 ligações), Tocantins (586) e Mato Grosso (410).

Assim como está ocorrendo em Mato Grosso do Sul, a chegada da eletricidade está contribuindo para melhorar a qualidade de vida e reduzir a vulnerabilidade social e econômica das comunidades beneficiadas, em sua maioria ribeirinhas e indígenas.

Em Rondônia, por exemplo, a empresa investe R$ 34 milhões. O trabalho começou em maio e já beneficiou 100 famílias ribeirinhas do Baixo Madeira, em Porto Velho. As localidades de Terra Firme, Ilha Nova, Firmeza, Ilha Assunção e Ressaca estão à cerca de 150 km de barco do centro da capital do estado.

A iniciativa já mudou a vida de pessoas como a do agricultor Joelson dos Santos Vieira, da pequena comunidade de Terra Firme. Ele conta que há 30 anos mora na localidade e que não conseguia fazer nada durante a noite devido à escuridão. Lembrou que precisava usar lanterna para andar dentro da própria casa à noite. “Eu não podia comprar as coisas no mercado para guardar aqui, porque não tinha energia para usar uma geladeira. A gente salgava a carne e o peixe para não estragar”.

O Ilumina Pantanal, entretanto, não vem servindo apenas de referência para projetos similares em outros estados do país. Sua dimensão e importância ganhou no ano passado um reconhecimento mundial.

A iniciativa foi a grande vencedora da premiação internacional Solar & Storage Live Awards 2021 sobre inovação e geração solar, que aconteceu em Birmingham, na Inglaterra.

O prêmio é concedido pela Solar Energy UK, uma organização britânica sem fins lucrativos que representa toda a cadeia de valor do armazenamento solar e de energia, liderada por membros de mais de 230 empresas e associados.

O gerente de planejamento da Energisa Mato Grosso do Sul, Antonio Matos, participou da cerimônia representando a empresa. “Essa premiação reforça que acertamos. Vemos o resultado de um trabalho que além de inovar, vem transformando a realidade de muitas famílias. Fico muito feliz de receber na Inglaterra em nome do Grupo Energisa esse troféu. A hora que anunciaram o nome da empresa, o coração bateu mais forte. Esse prêmio é nosso!”, disse na época.

Matriz energética de MS

Levantamento da Superintendência de Energia do governo do estado feito a pedido do g1 aponta que grande parte da matriz energética de Mato Grosso do Sul é de fontes renovavéis, ou seja, de recursos capazes de se recomporem em determinado período de tempo.

Segundo esses dados, excluindo as potências das usinas hidrelétricas de Ilha Solteira, Jupiá e Porto Primavera (todas de fontes renováveis também e que juntas tem capacidade de gerar 6.541 MW), o estado tem uma potencia instalada para produzir 3.170 MW de energia, sendo 79,1% de fontes renovaveis.

Conforme as informações da superintendência, a biomassa é responsável por 52,07% da potencia instalada de produção no estado. São 20 usinas sucroenergéticas que utilizam o bagaço de cana-de-açúcar para cogerar 1.155 MW (36,43% do total do estado) e 2 que usam a lixivia, para produzir 496 MW (15,64%).

As hidréletricas, exceto as três grandes – Ilha Solteira, Jupiá e Porto Primavera, e considerando as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e centrais geradoras hidrálicas (CGHs), totalizam 42 unidades no estado e condições de geração de até 541 MW (17,06%).

A fonte solar fotovoltaica, responde, conforme a Superintedência de Energia, pela potencia instalada de 315 MW (9,97% do total do estado), com 31.176 unidades entre as ligadas a Energisa e a Elektro.

No entanto, a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) aponta que a capacidade de produção em Mato Grosso do Sul é ainda maior, chegando a 358 MW.

A única fonte não renovável que aparece com destaque no ranking da matriz energética sul-mato-grossense é o gás natural, com 5 usinas e capacidade de produção de 640 MW (20,18%).

A Superintendência destacou ainda que com uma demanda de 1.500 MW, o estado utiliza somente 47% de toda a sua potencia instalada na geração de eletricidade, considerando todas as fontes.

A força do sol no Brasil

Segundo a Absolar, em junho o Brasil atingiu a marca histórica de 11 gigawatts (GW) de potência instalada em telhados, fachadas e pequenos terrenos de residências, comércios, indústrias, produtores rurais e prédios públicos. Isso equivale a 78,6% da capacidade da usina hidrelétrica de Itaipu.

De acordo com a entidade, o país possui mais de 1 milhão de sistemas solares fotovoltaicos conectados à rede. A cadeia do setor, contabilizando dados desde 2012, movimentou mais de R$ 85,4 bilhões em novos investimentos, que geraram mais de 475 mil empregos (no acumulado) e uma arrecadação aos cofres públicos de R$ 22,7 bilhões.

A Absolar aponta que embora tenha avançado nos últimos anos, o Brasil – detentor de um dos melhores recursos solares do planeta – continua atrasado no uso da geração própria de energia solar. Tanto que dos mais de 89,6 milhões de consumidores de energia elétrica do País, apenas 1,4% já faz uso do sol para produzir eletricidade.

De acordo com a instituição, a tecnologia solar fotovoltaica já está presente em 5.489 municípios e em todos os estados. São líderes em potência instalada: Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Paraná. Mato Grosso do Sul ocupa a 11ª posição no ranking nacional de geração.

“A energia solar terá função cada vez mais estratégica para o atingimento das metas de desenvolvimento econômico e ambiental do País, sobretudo neste momento, para ajudar na recuperação da economia, já que se trata da fonte renovável que mais gera empregos no mundo”, aponta o CEO da Absolar, Rodrigo Sauaia.