Há 40 anos em MS, palestino fala com tristeza sobre a guerra

"Os palestinos só querem viver em paz", diz Munther Safa, que mora atualmente em Corumbá, onde é comerciante

Munther Safa assiste diariamente ao canal Al Jazeera em árabe para saber sobre o conflito - VIVIANE AMORIM

Munther Safa é um comerciante que tem uma loja de roupas no centro de Corumbá, além de uma pequena propriedade rural nas proximidades. Ele fala espanhol e português, mas sua língua nativa é o árabe – e mesmo vivendo no Brasil há mais de 40 anos, seu sotaque não foi embora. Muito menos a saudade de sua terra natal, o território palestino.

Ele também é o presidente da Sociedade Árabe Palestina Brasileira de Corumbá, entidade legalmente constituída e que tem representatividade direta com a Embaixada do Estado da Palestina, em Brasília (DF), bem como com a Federação Árabe Palestina do Brasil.

O palestino tem nacionalidade brasileira e reforça que aqui no Brasil é o paraíso, onde é possível viver em paz com toda a família. E tem na cabeça o intuito de defender esse mesmo direito para seus familiares e outros palestinos que estão espalhados na região onde há, desde o dia 7, um conflito intenso, com morte de mais de 1,4 mil palestinos e 1,2 mil israelenses, pelo menos.

Nesta entrevista, ele aborda como o conflito acabou se intensificando, critica a falta de espaço que os palestinos encontram para dar sua versão da guerra e reforça que, no passado, antes da criação do Estado de Israel, o território palestino era ocupado por mulçumanos e judeus.

Como é a relação dos descendentes palestinos que vivem aqui em Mato Grosso do Sul, especialmente em Corumbá, diante do que está ocorrendo atualmente na guerra?

Praticamente toda a comunidade palestina-árabe que mora aqui [em Corumbá] tem parentes – são primos, tios, irmãos –, além de propriedade, na região [da Cisjordânia].

Qualquer conflito e agravamento da situação por lá, ataques israelenses contra palestinos, a gente sente muito. Muitos ficam acompanhando minuto a minuto as notícias de lá. Isso porque a gente vive embaixo de uma ocupação israelense desde 1948, com a criação do território de Israel em território palestino.

Nossa comunidade de descendentes de palestinos está em torno de 420 pessoas em Corumbá. Todos nós aqui temos parentes lá, temos casa ainda lá, temos aquelas oliveiras de 500 anos ou mais antigas.

Qualquer conflito, ainda mais como esse, a gente sente muita preocupação. Quem realmente está precisando de ajuda são os palestinos. São eles que sofrem cortes de ajuda humanitária. Você imagina como é viver com bombardeios regulares?

Quais pontos o senhor avalia como principais para terem ocasionado a atual guerra?

O grande erro que houve foi a criação de um território israelense dentro de onde era a Palestina. Os judeus que viviam na Europa, nos Estados Unidos, foram deslocados desses lugares para vir para a Palestina.
E não estamos falando de judeus nativos da Palestina.

A população da Palestina, na época de ocupação inglesa [1920 a 1948], tinha mulçumanos, cristãos e judeus, todos nativos. O grande problema foi os que migraram com a ajuda da ocupação britânica. Depois disso, houve a promessa de um território para a criação do Estado de Israel na Palestina. Isso começou em 1948.
Desde aquele tempo de ocupação britânica, o povo palestino, os nativos, vem sofrendo tanto pelas milícias quanto pelos terroristas israelitas.

Depois, houve 1957 [por conta de conflitos, forças de paz da Organização das Nações Unidas, a ONU, ficaram presentes na região entre a Palestina e onde hoje é Israel], 1967 [Guerra dos Seis Dias, entre Israel contra Síria, Egito e Jordânia] e a expulsão de refugiados.

Houve conflitos com apoio britânico, dos Estados Unidos, da França. Além disso, os judeus sofreram muito na Europa, nos Estados Unidos. E muitos deles foram enviados para a Palestina – e isso deu o que vivemos hoje.

Vivemos hoje assassinatos, expulsões, processos de refúgio de palestinos por sionistas [ativistas do movimento político sionismo, iniciado no fim do século 19 pela comunidade judaica europeia para a defesa de um Estado judeu independente].

O que o senhor entende que representa esse conflito, iniciado no dia 7 a partir do ataque palestino?

Esse dia 7 de outubro é uma resposta, é um ponto de defesa. Os palestinos estavam na própria terra, e fomos tirados, tomaram tudo o que temos. Tiraram água, luz, riquezas, o direito de ir e vir, aeroportos. Muitas terras foram confiscadas. É como pegar um balão e começar a inflá-lo até explodir. O povo palestino chegou a esse ponto. Os colonos israelenses, diariamente, em todo o território nacional histórico, praticam crimes.
Se a ONU dá direito ao povo no planeta de lutar, então estamos lutando. Neste ano, os colonos judeus junto aos militares israelenses mataram mais de 263 palestinos, entre homens, mulheres e crianças. Isso ocorre em todo o território palestino, tanto no que foi ocupado em 1948 quanto o que foi ocupado em 1967, e aí a gente fala de Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

Poderia exemplificar o que significa a Faixa de Gaza?

Quando a gente fala de Faixa de Gaza, isso é falar de um território que é uma prisão a céu aberto. Não tem saída pela terra,

pela água e pelo ar. Tudo está controlado pelos israelenses. Não há nenhum tipo de liberdade. Os bombardeios do dia 9 foram um dos mais violentos.

E a Cisjordânia, território que hoje representa a origem dos descendentes palestinos que vivem aqui em Corumbá?

Cisjordânia é um território onde estão boa parte dos familiares e que fica próximo da Faixa de Gaza. São cerca de 70 km a 90 km de distância no caso de algumas cidades. Quando você soma o território palestino, pegando onde hoje está Israel e as demais áreas, vai ser o equivalente a 24 mil km².

Há toda uma pressão em um território muito pequeno, que tem 15 km de comprimento e 44 km de largura. Agora você imagina, para onde é que essas pessoas vão correr? A Faixa de Gaza é uma lata de sardinha,
o lugar mais populoso do mundo, onde vivem 2,3 milhões de palestinos. As casas são grudadas uma com as outras e os prédios, um do lado do outro. Não tem como escapar [de um ataque].

Pelo conhecimento do senhor, onde estão os combatentes palestinos?

Os militantes não vão estar dentro desses prédios [da Faixa de Gaza], mas vão estar a 30 metros, até a 40 metros embaixo da terra. Em Gaza, você tem casas em cima da terra e lá embaixo. Eu arrisco dizer que 95% das pessoas que morrem lá são civis, idosos, jovens e crianças.
A verdade é que, em qualquer tipo de ataque, o que sobra é o sofrimento do povo, seja na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, seja em todo o canto.

E como o Hamas está caracterizado nessa guerra?

Quando se fala em Hamas, eles são uma parte do povo palestino. Em eleições passadas [legislativas de 2006, em que 44 das 66 cadeiras por distritos eleitorais foram eleitas]foram eles que ganharam. Devemos entender que existe uma resistência palestina, uma que engloba todos. Existe uma humilhação diária dos palestinos
e que é resultado dessa ocupação. Qualquer tipo de produto que vai entrar em Gaza ou sair de lá passa por uma fiscalização, pode ser confiscado [pelos israelenses]. Tudo é 100% controlado.

Há quanto tempo o senhor não volta para o território palestino?

Eu já tenho 42 anos que não voltei mais para a Palestina. Saí de lá com 21 anos. Eu ainda sinto muito amor, muita saudade da casa que meu pai construiu, e ela continua lá. Parte da minha família continua lá. Sinto falta do meu passeio que fazia por lá. Ainda sinto o cheiro do vento, de ver aquela maçã, aquela uva, ver aquela oliveira. Eu sinto falta mesmo disso.
A gente tem amigos de escola, primos, que os israelenses mataram. Tenho um primo que
é casado com uma prima minha direta e que estava sentado em frente da casa dele. Um soldado, a 200 metros, mandou bala e matou ele. Isso aconteceu em Kafr Maliki anos atrás.

E como seria voltar para visitar a região onde viveu?

Tenho dois primos que foram para a Palestina [recentemente], você não imagina a dificuldade que foi para eles no deslocamento. Para entrar em Jerusalém, é uma barreira enorme. De Kafr Maliki [região de origem de boa parte dos descendentes palestinos que vivem em Corumbá e Campo Grande] até Jerusalém, são 30 km, mais ou menos, mas leva de duas a três horas para viajar com barreiras e impedimentos. Eles queriam ir para visitar a mesquita. Não conseguiram nem sequer chegar lá. E Jerusalém é o segundo lugar mais sagrado para os mulçumanos.

Qual seria a saída para acabar com esse conflito e todas essas mortes?

Quando Israel foi criado, eles continuaram se preparando militarmente e sempre usaram a força para se manterem vivos. Ou seja, é a força que mantém eles vivos. Será que eles têm esse direito para usar essa força? Será que o povo palestino não tem esse mesmo direito para se proteger e se defender?

Com relação à esperança, depois dessa resposta palestina por conta das agressões israelenses, o que precisa é ter uma mudança de pensamento de Israel. Hoje, os palestinos estão se defendendo e só querem viver em paz, nada mais que isso.

Por que os israelenses não se afastam e se retiram do território palestino, que hoje está ocupado? Falta um bom senso de Israel. E a situação tende a se agravar mais porque a resistência palestina está forte, com laços no Irã, no Líbano e na Síria. Se a Palestina é um território ocupado, será que o povo palestino não tem o direito de se defender?